“A política habitacional no Brasil é prejudicial às famílias”, alerta urbanista


Confira na íntegra entrevista do urbanista e arquiteto Sérgio Magalhães  concedida à jornalista Estela Benetti, da NSC Total:

“A política habitacional no Brasil é prejudicial às famílias”, alerta urbanista

Apesar dos muitos avanços em tecnologia e na área social, o brasileiro de menor renda ainda não conta com alternativa de financiamento habitacional adequada para construir ou reformar o seu imóvel onde gostaria. O alerta é do urbanista e arquiteto Sérgio Magalhães, de um dos maiores nomes do urbanismo social contemporâneo. Ele fez palestra na última semana sobre “Urbanismo social: Uma outra visão de favela”, em Florianópolis, a convite do Movimento Floripa Sustentável, que reúne 45 entidades catarinenses.

1- O senhor fez um alerta na sua palestra sobre a falta de financiamento habitacional no Brasil. Como avalia o atual modelo disponível no país?

– O crédito imobiliário no Brasil é muito baixo em relação ao PIB quando comparamos com países com o mesmo nível de desenvolvimento do Brasil, inclusive com os países da América Latina. O Chile, por exemplo, tem algo em torno de 27%, 28% de crédito comparado com o PIB. Os Estados Unidos têm cerca de 60%, o Brasil é coisa de 2,5%. O Brasil tem uma carência que pode ser suprida com a própria economia, não é uma coisa fora de propósito.

Agora, precisa ter um entendimento sobre quais são as virtudes disso. O que, hoje, o Brasil tem de financiamento são 20% do que se produz, um quinto do que se produz, a grande parte disso está vinculado estritamente a um acordo entre governos e empreiteiras, são créditos que são apropriados pelo governo junto às empreiteiras, as famílias não têm interferência nisso, elas não têm interferência em onde construir, como construir, onde morar.

Esse crédito, que não sei qual o valor exato, digamos que seja metade do crédito habitacional, produz os imóveis tipo Minha Casa Minha Vida. As famílias que precisam de casa ou aderem ao que está sendo oferecido ou não têm outra alternativa. É um crédito meio fajuto sob o ponto de vista do interesse da família.

É um negócio entre o governo e empreiteiras, e eu digo empreiteiras porque elas não são empreendedoras, elas entregam as unidades para o governo e o governo põe os moradores lá. E como eles têm um subsídio pela faixa abaixo da ordem de 90% a 95% é como se fosse dado. Então as famílias pegam aquele presente. No meu ver, não se pode considerar isto um financiamento habitacional.

2- O ideal seria a família pegar financiamento e fazer suas próprias escolhas?

– Sim, financiar, construir, comprar, usado ou novo, o que for, ou entrar no mercado e comprar de quem empreende, a família decidir, sairá mais barato do que está sendo feito. É uma estratégia econômica que despreza o valor que a cidade tem e na qual as famílias precisam de apoio para poder assumir o mercado formal.

É lastimável porque isso vem desde o BNH (o antigo Banco Nacional de Habitação), desde os anos 1960. Os governos no Brasil até o Getúlio Vargas não tratavam da habitação. Habitação era uma questão privada, não era pública.

Em 1937, 1938, o governo passou a admitir que tinha responsabilidade sob habilitação e criou a lei do inquilinato, que praticamente proibiu o aluguel, e o governo assumiu a responsabilidade de produzir moradia, e o que o governo produzia eram conjuntos residenciais, mas muito escassos, não atendia nada.

Quando veio o BNH, o país já passava por uma enorme crise e o BNH começou a construir também conjuntos habitacionais. Durou 21 anos, 22 anos, faliu, construiu quatro milhões de moradias em vinte e poucos anos.

O Brasil, neste mesmo período, construiu 15 milhões, 18 milhões de moradias. Ficou demonstrado que o modelo do BNH não funcionava. Quando entra em 2008 o Minha Casa Minha Vida retoma exatamente a mesma coisa que tinha sido comprometida antes.

A urbanização de favelas, por exemplo, que custa por família entre um quinto e um décimo do que custa uma moradia nova, não teve mais recursos. A política habitacional no Brasil é extremamente prejudicial à cidade, e às famílias, porque imagina o cara ter que construir a sua casa todo dia um pouquinho com tijolinho comprado. Imagina o que é isso? O cara leva 10 anos, 20 anos, 30 anos, 40 anos e ainda não tem infraestrutura.

3- O projeto que o senhor liderou no Rio de Janeiro foi a urbanização de favelas. Foi essa valorização dos imóveis locais que vocês trabalharam?

 

– Foi a construção das infraestruturas, serviços públicos entre outras coisas, uma resposta que ficou extremamente aderente aos desejos da população, que adorou.

4- O que podemos fazer para deixar as cidades mais inclusivas?

– A primeira coisa é reconhecer que cidade é integração. Quando criamos grandes condomínios fechados, ou mesmo favelas, estamos criando a anticidade, o que não é um bom caminho. Isto não ajuda os moradores, não ajuda o conjunto dos cidadãos, porque uma cidade toda segmentada não é vantajosa para ninguém, não ajuda na economia do país, porque perde energia e perde proveito, e não ajuda na democracia.

Enfim, o Brasil está assim apesar destas coisas todas, mas se tivesse políticas consistentes imagina onde poderíamos estar. Há 40 anos o Brasil patina na economia, é muito tempo para um país com a dimensão do Brasil ficar patinando.

5- O senhor também falou sobre drenagens, que elas estão esquecidas. Qual a importância de olharmos para essa parte da infraestrutura?

– Se só colocar rede de esgoto e não urbanizar, em um ano, dois anos, acaba aquela rede de esgoto, porque a água da chuva vem e leva a terra para o ralo, o ralo entope, fica lá entupido dois, três, cinco, 10 dias, a empresa não mexe, aquela rede entope, o esgoto começa a aflorar, fica tudo como estava antes mesmo com o investimento em uma rede de esgoto.

Agora, se a rede de esgoto foi construída e no local tem a drenagem também e tem a pavimentação, tudo muda de figura, é outro assunto. Podemos ter manutenção e ter um largo tempo de preservação do serviço.

O senhor destacou que os Estados Unidos têm 70% da população nas cidades e nós, no Brasil, temos 85%. Significa que o urbanismo no Brasil é maior que dos EUA, um país rico. O que de fato significa isso para nós?

– Significa que temos um enorme potencial. A vida urbana é lugar do conhecimento, da inovação, do desenvolvimento, é um lugar onde a saúde tem mais condições. Ao mesmo tempo que tem inúmeros desafios tem todas estas potencialidades.

Por Estela Benetti, 25/08/2024 – Portal NSC Total 

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